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Biologia e mecanismos de acção dos agentes das Encefalopatias Espongiformes Transmissíveis

 

O AGENTE INFECCIOSO

O agente do Scrapie, assim como os das restantes EET, só é detectável por inoculação a animais susceptíveis, não se dispondo de sistemas in vitro de replicação destes agentes, embora se tenha conseguido clonar células de neuroblastoma murino que, uma vez expostas a agente de Scrapie, produzem cronicamente o agente e são infecciosas para o murganho.

 

Apesar de nunca observado ao microscópio electrónico, a filtrabilidade do agente até 20-100 nm parecia indicar, inicialmente, a sua natureza viral. No entanto, logo algumas observações mostraram um comportamento pouco habitual em outros vírus, designadamente o longo período de incubação das doenças, a grande resistência a muitos agentes virucidas e a impossibilidade de identificação de um ácido nucleico.

 

Estas características justificaram a designação, corrente até há alguns anos, de agentes virais não convencionais.

 

Barreira de espécie e estirpes

Características comuns entre os agentes das EET e os vírus convencionais são a existência de barreira de espécie, a impossibilitar ou dificultar a transmissão de espécie a espécie, e o isolamento de estirpes, com características biológicas ou de infecciosidade diferentes.

 

No caso dos agentes de EET, as estirpes são caracterizadas por diferente tempo de incubação da doença e por diferentes perfis de neuropatologia, designadamente de distribuição das lesões por diferentes áreas do cérebro. No caso do Scrapie, conhecem-se mais de 20 estirpes. Nas EET humanas, a dificuldade de transmissão experimental tem dificultado a definição de estirpes.

 

Todos os isolados de BSE, incluindo isolados distantes como de animais doentes do RU ou da Suíça, têm comportamento muito próximo, apontando para a existência de apenas uma estirpe. Este facto é estranho, quando comparado com a diversidade de estirpes de Scrapie, possivelmente na origem da BSE. É possível que tenha havido selecção de uma estirpe de Scrapie com capacidade de maior replicação nas vacas ou de uma estirpe mais resistente aos processos de inactivação usados no fabrico de farinha de carne e ossos.

 

A barreira de espécie é observável como baixa eficiência de transmissão entre espécies e com longos períodos de incubação. Uma vez ultrapassada, observa-se acentuado encurtamento no período de incubação em passagens posteriores e, frequentemente, diferenças de patogénese.

 

A natureza química do agente

A existência de estirpes e de barreiras de espécie só parece explicável por uma molécula informativa. Em oposição a todos os vírus, com os seus genomas de ADN (ácido desoxirribonucleico) ou ARN (ácido ribonucleico), os agentes das EET escapam sistematicamente à identificação de um ácido nucleico próprio.

 

Com efeito, a infecciosidade é completamente resistente a nucleases, e experiências de cinética de inactivação com radiações mostraram que a dimensão máxima de um possível ácido nucleico seria de cerca de 1500 bases. A purificação do agente do Scrapie confirmou estes dados. O pico de infecciosidade em preparações purificadas é composto essencialmente por material proteico e é desprovido de ácidos nucleicos.

 

A hipótese de os agentes das EET serem constituídos exclusivamente por uma proteína com capacidade replicativa ou de converter uma proteína celular normal numa forma patogénica deve-se inicialmente a Griffith, em 1967, e foi muito depois popularizada por Prusiner, que designou como prião esse hipotético e heterodoxo agente, tendo recebido o prémio Nobel por esses trabalhos.

 

A proteína identificada em preparações purificadas do agente do Scrapie, PrPSc, é uma proteína de 27-30 kDa, insolúvel em detergentes, resistente à digestão com proteinase K e com tendência para agregar em bastonetes semelhantes às SAF. A hibridação com sondas deduzidas da sequência da PrPSc purificada permitiu identificar um gene para uma versão celular normal da PrPSc, designada como PrPC. A PrPC tem peso molecular de 33-35 kDa, é solúvel e completamente sensível a proteases.

 

As duas proteínas são quimicamente idênticas e a diferença de pesos moleculares é um artefacto devido à clivagem parcial da PrPSc por proteinase K durante a purificação. A PrPC localiza-se na face externa da membrana celular, enquanto que a PrPSc se acumula no citoplasma, provavelmente em lisossomas.

 

Os genes PRNP de muitos mamíferos e da galinha estão caracterizados e sequenciados. Como esquematizado na Figura 1, o gene é constituído por um pequeno exão (dois, no caso dos genes murino e ovino) separado por cerca de 10 kb de um segundo exão que contém, sem interrupção, toda a sequência codificante, o que elimina a possibilidade de a PrPSc ser gerada por splicing alternativo. Na região 5' existem quatro ou cinco repetições, conforme a espécie, de uma mesma sequência de oito codões. Todos os genes de mamífero conhecidos são altamente conservados, com homologias da ordem de 80-90%. A análise das sequências não mostra diferenças que possam ser relacionadas com os dados da transmissão entre espécies ou com as estruturas alternativas da molécula, discutidas adiante.

 

Sobre a função normal da PrPC conhece-se pouco, tendo sido descrito que murganhos transgénicos a que se removeram os genes PRNP têm perturbações do sono e apresentam degenerescência das células de Purkinje.

 

Há um número crescente de resultados experimentais que mostram que a PrPSc é, pelo menos, o componente essencial da infecciosidade e que dão consistência a um modelo analisável, por exemplo, em termos de predição futura das barreiras de espécie:

  • PrPSc e infecciosidade copurificam;

  • PrPSc e infecciosidade acompanham-se em copartição em membranas, detergentes e lipossomas;

  • A hidrólise de PrPSc causa perda de infecciosidade;

  • A infecciosidade pode ser purificada por cromatografia de afinidade com anticorpos anti-PrPSc;

  • Há proporcionalidade entre título de infecciosidade e concentração de PrPSc no cérebro de animais doentes;

  • O soro anti-PrPSc neutraliza a infecciosidade;

  • As placas de PrPSc são específicas das EET;

  • Células de neuroblastoma murino em cultura infectadas com agente de Scrapie produzem PrPSc e causam doença quando inoculadas em murganhos;

  • Os genes de susceptibilidade ao Scrapie na ovelha e no murganho são os próprios genes de PrPC;

  • Ao contrário da CJD esporádica ou das EET animais, em que a sequência da PrPSc é a da PrPC normal, as EET humanas familiares são causadas por mutações no gene PRNP;

  • Murganhos transgénicos com os genes PRNP inactivados são resistentes ao Scrapie;

  • A sobre-expressão do gene PRNP em murganhos transgénicos causa degenerescência espongiforme.

 

MECANISMO MOLECULAR DAS EET

 

Formação da PrPSc

A estrutura primária da PrPSc é idêntica à da PrPC. Ao contrário das EET humanas familiares, não se encontram mutações na CJD esporádica, no Kuru e nas EET animais. Da mesma forma, nunca se demonstrou qualquer modificação pós-traducional em relação à PrPC que pudesse justificar a patogenicidade da PrPSc.

 

A diferença significativa encontrada entre a PrPSc e a PrPC diz respeito à estrutura secundária, que apresenta um conteúdo alto de hélices alfa e praticamente ausência de folhas beta na PrPC, enquanto que a PrPSc tem 43% de folhas. A perda de estruturas em folha beta pela PrPSc por desnaturação térmica é paralela à perda de infecciosidade. A estrutura proposta para a PrPC está esquematizada na Figura 2 A, em que os cilindros representam as hélices alfa. Note-se que as mutações conhecidas nas EET humanas mapeiam nestas hélices ou na transição para as outras regiões (Figura 2 C).

 

O mecanismo de "replicação"

Com base nestes dados, o grupo de Prusiner propôs um modelo para a replicação da PrPSc por conversão isomérica da PrPC, tomando como molde a conformação da PrPSc e que está representado esquematicamente na Figura 3 A.

 

A PrPC é sintetizada e degradada como parte do metabolismo celular normal.

 

Flutuações estocásticas na estrutura tridimensional da PrPSc podem criar uma variante anormal e rara, PrP*, parcialmente desenrolada em uma ou mais das hélices alfa e que é um intermediário na formação da PrPSc. Formando um dímero com uma molécula análoga ou com uma molécula normal, geraria, por esta interacção, duas moléculas de PrPSc. Normalmente, a concentração de PrP* não seria suficiente para produzir PrPSc, mas ocasionalmente (com baixa frequência, correspondente no homem à incidência da CJD esporádica) poderia atingir uma concentração a partir da qual um feedback positivo levaria à formação exponencial e acumulação de PrPSc.

 

Este processo seria muito facilitado e acelerado pela presença de PrPSc exógena, da própria espécie ou de outra espécie, mas com capacidade para formar heterodímeros com a PrP* e convertê-la em PrPSc. A formação de PrP*, a níveis suficientes para iniciação espontânea do processo de conversão, pode também ser facilitada por erros mutacionais na sequência da PrPc, originando as formas familiares das EET. A conversão estrutural nos heterodímeros poderá necessitar da acção adicional de uma chaperona (barras cinzentas no esquema).

 

Um modelo alternativo, retomando a proposta teórica de Griffith, postula que a patogenicidade da PrPScdepende da sua cristalização em fibrilhas de amilóide, num processo de nucleação-polimerização análogo ao da síntese de microtúbulos, de flagelos ou de procapsides de bacteriófagos (Figura 3 B). Uma forma parcialmente desenrolada de PrPC, correspondente à PrP*, tende a agregar, num processo lento e ineficiente até que, ocasionalmente, atinge uma concentração crítica de nucleação a partir da qual a polimerização é rápida. O equilíbrio do processo seria sensível a mutações da PrPC e a polimerização seria muito mais eficaz e rápida quando na presença de uma "semente" de PrPSc exógena. Em qualquer dos casos, a fragmentação dos polímeros fornece novas sementes, que ampliam exponencialmente o processo de polimerização.

 

Ambos os modelos predizem que, no caso de uma EET por transmissão entre espécies, a PrPSc produzida é da espécie hospedeira e não a PrPSc original infectante.

 

Esta predição é confirmada por experiências com murganhos transgénicos expressando genes de PRNP de hamster. O murganho não é susceptível ao Scrapie de hamster e vice-versa. Os murganhos transgénicos com genes de hamster são sensíveis a Scrapie de murganho, como os murganhos normais. Ao contrário destes, são também susceptíveis ao Scrapie de hamster, com tempo de incubação muito curto, característico doScrapie de hamster em hamsters. A neuropatologia é característica de Scrapie de hamster e o agente produzido é de tipo hamster, causando doença nestes animais mas não em murganhos. Pelo contrário, quando estes animais transgénicos são inoculados com Scrapie de murganho, o tempo de incubação e a patologia são de tipo murino e o agente produzido é patogénico para murganho mas não para hamster.

 

A barreira de espécie

Segundo estes modelos, a barreira de espécie depende apenas do grau de afinidade entre a PrPSc da espécie infectante e a PrPC da espécie hospedeira para formação dos heterodímeros, ou para nucleação e conversão na isoforma patogénica.

 

A chave da conversão entre espécies reside portanto nos respectivos genes de PrPSc.

 

Os murganhos transgénicos têm facultado resultados importantes quanto à transmissão das EET e foram usados na primeira experiência destinada a demonstrar a transmissão da BSE ao homem, depois comprovada com a observação de que a "assinatura de estirpe" do agente da vCJD era idêntica à da BSE. O grupo de Collinge construiu murganhos transgénicos com diversas combinações de genes PRNP de murganho e humanos e testou a sensibilidade destes murganhos transgénicos a priões de CJD e de BSE. Os murganhos normais não foram susceptíveis a CJD, enquanto que os transgénicos totais (só com genes PRNP humanos e nenhum de murganho) adoeceram. Murganhos com genótipo misto, humano e murino adoeceram com tempos de incubação mais longos. Os murganhos transgénicos só com genes humanos inoculados com BSE desenvolveram doença, embora ao fim de muito tempo, o que mostra a susceptibilidade do homem à BSE.

 

A variabilidade de estirpes

O argumento mais forte contra a teoria priónica das EET é a dificuldade de explicar o elevado número de estirpes, designadamente do Scrapie. Por esta razão, ainda alguns investigadores, embora em número crescentemente reduzido, defendem uma origem viral para estas doenças. Em alternativa, também tem sido sugerido que, para além da PrPSc patogénica, as partículas infecciosas, designadas como virino ou holoprião, contêm um pequeno ácido nucleico responsável pela especificidade e variabilidade de estirpe.

 

Tirando partido da diferença de peso molecular das PrP 27-30 de duas estirpes diferentes de TME/EET transmitida ao hamster, demonstrou-se que cada uma dessas formas de PrPSc pode converter a mesma PrPCde hamster em PrPSc com a especificidade da estirpe conversora. Assim, pelo menos uma característica de estirpe pode ser explicada exclusivamente pelo mecanismo de conversão em isoformas diferentes, mas as condições experimentais impedem uma caracterização de estirpe mais completa, por inoculação animal.

 

Cada estirpe tem um padrão típico de distribuição cerebral de PrPSc, embora experiências genéticas sugiram que um gene celular (gene Y), distinto mas próximo do gene PRNP, possa também determinar a neuropatologia. Em alternativa, pode-se especular que, pela facilidade em formar dímeros, a PrPC seja o próprio receptor da PrPSc. Neste caso, a determinação da célula alvo poderia depender de diferentes afinidades para as diversas estirpes de PrPSc, consoante o microambiente da PrPC (interacções com lípidos ou glicoproteínas da membrana, por exemplo).

 

 

 

Fonte: Direcção-Geral da Saúde (DGS)

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