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A ‘guerra’ do canabidiol: nem alimento nem medicamento

  • Tuesday, 12 June 2018 09:28

“Que gotas são estas? Servem para aliviar quem sofre de epilepsia e os efeitos secundários da quimioterapia?” Os folhetos que estão no balcão da dietética - ou nos sites online - asseguram que o canabidiol (CBD), óleo extraído das sementes de cânhamo (Cannabis sativa L.) tem efeitos benéficos, até mesmo nos casos de insónia, dor e fibromialgia. Tudo isto isento de estados alterados de consciência, ou seja, sem efeitos alucinogénios.

Caso os houvesse, nem poderiam estar à venda como suplementos alimentares, já que a sua comercialização teve de passar pelo crivo da Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV). Em declarações à VISÃO, o organismo público do Ministério da Agricultura esclareceu que estes “géneros alimentícios” podem apresentar efeitos benéficos para a saúde “mas não propriedades de profilaxia ou tratamento de doenças” e que a comercialização e consumo são permitidos, “desde que o teor de tetrahidrocanabinol (THC) não exceda 0,2% na planta”.

“Compram e voltam, porque se sentem efetivamente melhor”, assegura quem vende. Perguntamos quais são os preços dos frascos com 3% e 15% da substância, os disponíveis para venda. Variam entre 30 e 135 euros. Assim tão caros? “Depende do ponto de vista, este produto é orgânico, natural, certificado e produzido de acordo com todas as normas legais”, informam, do outro lado do balcão. Ou via email, no caso de sites que vendem produtos dietéticos e alimentares e sem loja física. Percebe-se porquê. Para obedecer aos requisitos legais em vigor, “o CBD quimicamente sintetizado custa 10 vezes mais do que o CBD extraído e purificado a partir da planta Cannabis S.”, lê-se no site da ONOL, empresa sediada em Braga.

Estranha-se que todos os produtos apareçam com a menção “esgotado”, mas o mistério fica desvendado mais adiante, na secção de perguntas e respostas: “A ONOL está a estudar a possibilidade de comercializar CBD proveniente de síntese química ou biossíntese (...) Até lá, não é vendido na presente loja.” O motivo apresentado é este: “Ainda que a quantidade de THC seja vestigial, é detetável pelos testes rápidos da polícia e unidades caninas.” Há escassos meses, o proprietário de uma loja nos Açores, que há mais de um ano importava os frascos através de um site espanhol, viu-se em apuros quando os testes da Polícia Judiciária encontraram níveis de THC superiores aos permitidos por lei. Surpresas destas acontecem e trazem à luz a pergunta incontornável: onde está a legislação para estes produtos?

PUBLICIDADE ENGANOSA: SIM OU NÃO?

A questão ganha ainda mais pertinência desde que o valor terapêutico do canabinóide não estupefaciente da canábis nas crises (convulsões) de epilepsia - com baixo ou nenhum risco de dependência - foi reconhecido pelo comité de peritos em dependências químicas da Organização Mundial de Saúde (OMS). Porém, no final do ano passado, o mesmo organismo decidiu fazer nova revisão da canábis e seus derivados, incluindo o CBD. Com início previsto para maio deste ano, esta revisão justifica-se “pelo interesse crescente do uso da canábis para fins medicinais, incluindo os cuidados paliativos”. E, ainda, porque estão em curso várias dezenas de ensaios clínicos, cuja meta é ver a substância autorizada e comercializada no âmbito clínico, regulado pelas autoridades de saúde.

Já os suplementos alimentares são todo um outro mundo à parte. Entre consumidores, parece vigorar a mensagem de que “se não faz mal, até pode fazer bem”, sendo secundário se é, ou não, um fármaco, desde que esteja certificado como diz na embalagem. Por agora. No passado mês de abril, a FDA, autoridade americana, lançou uma nota, apoiando-se na Drug Enforcement Administration (DEA), que entende serem estas substâncias controladas, vulgo, ilegais, dando a saber que “os produtos à base de CBD devem ser excluídos da definição de suplementos alimentares”.

Viável mesmo só na investigação científica e no meio clínico. Importa dizer que existem dois fármacos contendo CBD, da GW Pharmaceuticals: o Epidiolex, para uma forma rara de epilepsia, e o Sativex (não comercializado no mercado português, embora disponível se for pedida autorização de utilização excecional de medicamentos), que inclui ainda THC na sua composição, para espasticidade na esclerose múltipla e em casos muito específicos de dor oncológica.

Entre isto e anunciar a “cura” sob a forma de suplementos vai uma longa distância, ou seja, trata-se, para a FDA, de “publicidade enganosa”. Segundo o INFARMED, “não existe harmonização nos Estados Membros sobre a classificação deste produto e eventual legalização da sua utilização”. Quanto à classificação do CBD, "a OMS emitiu um comunicado informando que o mesmo não se encontra nas tabelas de substâncias controladas (apenas se este componente for parte do extrato) mas esta matéria será objeto de discussão numa reunião a ocorrer ainda este mês”.

PRUDENTES E CONFIANTES

Enquanto se aguarda a votação em plenário da versão final do diploma que regula a utilização de medicamentos, preparações e substâncias à base de canábis para fins medicinais (já aprovado na comissão parlamentar de Saúde), o mercado dos suplementos, mantém-se, ao que tudo indica, em alta. “Temos [o canabidiol] há ano e meio, que importamos da Polónia, e a procura tem sido muita”, confirma João Silva, conselheiro da Celeiro Integral, em Tomar. “Quem compra costuma vir informado, com referências como a da PubMed, e usa-os para reduzir náuseas e dores associadas aos tratamentos oncológicos e para a epilepsia”, explica. Quanto aos preços, é perentório: “O povo diz: se fizer efeito não é caro.”

A crescente procura do CBD tem sido uma constante na prospeção realizada em vários estabelecimentos que importam marcas distintas do suplemento. Tiago Vale, diretor de marketing das lojas Celeiro, com sede em Lisboa, destaca o facto de o Raw Hemp Oil Phyto + ter uma comercialização recente, acrescentando que esta se encontra “dentro dos requisitos legais e notificada à autoridade competente” e com uma “evolução lenta mas progressiva, não sendo possível dar dados concretos sobre as vendas, assim como qual o perfil dos clientes que o adquirem”.

Até agora, nenhum pedido de informação, queixa ou reclamação chegou à Direção-Geral do Consumidor. Nem registo de alertas sobre publicidade enganosa ou motivo para alarme. Sabemos, sim, que segundo o INFARMED, “o canabidiol está neste momento em avaliação centralizada na EMA (Agência Europeia do Medicamento), havendo mais de 40 ensaios clínicos realizados/autorizados ou em curso na UE”.

Fonte: Visão