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Nem tudo o que é tradicional é bom

  • Wednesday, 24 October 2018 09:37

No domínio da alimentação existem algumas regras básicas que nos permitem comer melhor e mais saudável ao longo do ano. Variar, porque cada alimento tem uma composição nutricional muito distinta. Comer produtos frescos e da época sempre que possível, pois é uma forma de se evitar aditivos e perdas de nutrientes durante o processamento industrial. E por fim, consumir produtos nacionais ou da nossa tradição alimentar. Produtos com os quais nos relacionamos há muito tempo, que permitem manter postos de trabalho e reduzir o impacto ambiental causado pelo transporte e excesso de embalagem.

Estas premissas seriam todas válidas se não estivemos a atravessar uma época especial. Hoje vivemos até muito tarde como nunca aconteceu na história da humanidade. Atualmente, Portugal possui um milhão de cidadãos com mais de 75 anos e a esperança média de vida à nascença ultrapassa os 80 anos, quando no tempo dos nossos bisavós, em 1920 (o primeiro ano para o qual há dados para Portugal) seria de apenas 35,6 anos.

Do ponto de vista alimentar, não podemos querer ter a comida dos nossos avós, por muitas e doces recordações que possam trazer. Primeiro, porque queremos viver até mais tarde do que eles e os nossos pâncreas, os nossos fígados e os nossos corações não podem ter uma sobrecarga de açúcar, álcool e sal como tinham quando vivíamos em média 35 anos e não 80 anos. Também não gastamos a energia que gastávamos porque chegaram as máquinas que vieram substituir muito do nosso trabalho braçal mais intenso. Por outro lado, temos hoje um planeta com mais de 7,6 biliões de pessoas para alimentar quando em 1920 este valor não chegava aos 2 biliões. Isso significa que certas práticas, agressivas para o planeta e para a biodiversidade, como o consumo regular de carne de vaca ou de peixe do oceano, terão de ser colocadas em causa.

Os recursos são escassos e assistimos a uma dramática alteração climática pela mão humana que poderá em 20 anos fazer perder totalmente o gelo do Árctico, originando alterações no planeta que colocarão em causa a vida humana como a conhecemos hoje. E depois, e mais importante do que tudo, temos tecnologia que nos permite produzir comida de forma mais limpa, mais segura e sem recorrer a conservantes como o sal, o fumo e o açúcar que utilizávamos abundantemente no passado.

Isto significa rejeitar alguns produtos tradicionais que sempre comemos, e abrir os braços a outros, que nunca provamos, mas que teremos de comer se queremos continuar neste planeta por mais algum tempo. Entre os alimentos que teremos de reduzir o consumo e alterar a produção estará o consumo frequente de carne, de produtos cárneos fumados e salgados (charcutaria), refrigerantes tradicionais e processados com pouco valor nutricional como aperitivos fritos e salgados e pastelaria hipercalórica. Pelo contrário, as fontes de proteína de menor impacto ambiental como as leguminosas (feijão, grão, lentilha, ervilha), os insetos ou fruta e hortícolas produzidos no interior de casa e em meio urbano ganharão expressão, em particular à medida que as cidades forem crescendo.

Com estas premissas, comer de forma responsável passará cada vez mais por ingredientes produzidos localmente (que poderão ser novos para a cultura alimentar local) e com reduzido impacto ambiental na produção, embalagem e transporte, em combinação com elevado valor nutricional e distribuição da riqueza produzida para quem produz. A cultura e a tradição alimentar do passado são recursos cuja reinterpretação nos pode ajudar a desenhar as soluções do futuro, mas não vale a pena defender tudo o que é tradicional, porque não é necessariamente bom.

Fonte: Visão