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O novo (e modificado) fruto proibido

  • Tuesday, 20 February 2018 10:37

Um só homem – de origens portuguesas – salvou as papaias do Havai. Estávamos em meados dos anos 80 quando o fitapatologista Dennis Gonsalves, filho de um emigrante português de primeira geração com raízes nos Açores e na Madeira, começou a trabalhar numa solução para um vírus que estava a dizimar as plantações do arquipélago pertencente aos EUA. Em 1998, depois de uma longa investigação, e um ainda mais longo processo de aprovação por parte do instituto regulador americano, a papaia transgénica Rainbow (arco-íris), resistente ao vírus, pôde ser adotada pelos agricultores.

O sucesso foi imediato. Uma cultura à beira de desaparecer teve um redobrado fôlego e, dois anos mais tarde, a papaia Rainbow já correspondia a metade da produção; hoje, ronda os 85 por cento. Não que a nova papaia tivesse tido vida fácil: nos primeiros anos, ativistas decidiram protestar contra os transgénicos cortando papaeiras e causando enormes prejuízos aos agricultores.

Já se passaram 20 anos sem que se conheçam efeitos nefastos no ambiente e na saúde causados pela papaia havaiana. Mas isso não aplacou a oposição aos organismos geneticamente modificados (OGM). Até hoje, apenas mudaram os métodos. Meses antes de a primeira maçã transgénica chegar ao mercado americano, já as associações ambientalistas (com a Friends of the Earth à cabeça) desenvolviam uma campanha para pressionar as cadeias de restaurantes e os supermercados a boicotá-la, alegando, tal como há duas décadas, “possíveis efeitos na saúde”, sem especificar quais.

A empresa canadiana Okanagan Specialty Fruits tem esperança que a vantagem estética da sua Arctic Golden se sobreponha às campanhas do medo. Afinal, quem não quererá uma maçã que, horas depois de cortada, mantém o seu aspeto fresco, sem o mais leve sinal da oxidação que torna as outras maçãs pouco apelativas? “Estudos demonstram que as crianças comem mais maçãs se estiverem fatiadas”, alega a empresa no seu site, piscando o olho aos pais que querem preparar lanches saudáveis para os seus filhos levarem para a escola.

Ao longo do ano se verá se a maçã se torna um sucesso – ou se tem o mesmo destino do Flavr Savr, um tomate geneticamente modificado para durar mais tempo, derrotado por uma oposição feroz de ativistas que conseguiu assustar os consumidores.

HOMEM VS DEUS

A “Arctic Golden”, em que foi “silenciado” um gene que produz a enzima responsável pelo escurecimento da fruta, representa um marco nos OGM. Até aqui, com a exceção do extinto tomate Flavr Savr (1994-1997), todos os transgénicos foram pensados exclusivamente para os agricultores: variedades mais resistentes e mais produtivas, na sua maioria. Mesmo o salmão da empresa americana AquaBounty, geneticamente modificado para crescer duas vezes mais depressa do que o normal (à venda no Canadá desde o ano passado), é uma mais-valia apenas para os produtores. A maçã, no entanto, tem os consumidores em mente. É o (re)início de um novo mundo.

“As potencialidades são infinitas”, diz Rita Batista, doutorada em biologia e investigadora do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. “Já há investigação noutros produtos a pensar no consumidor, com um aumento do valor nutricional. Em Espanha, por exemplo, está a trabalhar-se num milho multivitamínico, com mais vitamina A, C e B9. Também se tenta produzir trigo sem glúten, para os celíacos poderem comer pão”, explica a cientista, primeira autora de um estudo recente, cujas conclusões demonstram que o simples stresse ambiental (água ou luz a mais ou a menos) provoca mais alterações genéticas do que a própria engenharia genética. O arroz dourado, enriquecido com vitamina A, é outro caso, embora se destine a suprir as carências vitamínicas em países em desenvolvimento (onde os pequenos agricultores não terão de pagar as licenças).

José Feijó, especialista em biologia molecular, acredita que o estigma contra os OGM está a mudar “lentamente”. “É cada vez mais evidente que não há problemas ambientais e para a saúde. Mas continua a haver, sim, um ativismo financiado de oposição. Aliás, fiz uma pesquisa por Arctic Golden e os primeiros três resultados que apareceram foram de anúncios pagos de sites ativistas contra a maçã”, garante o professor na Universidade de Maryland, EUA. “Muita gente olha para isto como uma questão religiosa. 
A propósito dos OGM, o príncipe Carlos de Inglaterra, que por acaso é um dos maiores produtores de alimentos biológicos do Reino Unido, chegou mesmo a dizer que o Homem estava a mexer em coisas que só a Deus pertence. Mas, se pensarmos assim, toda a agricultura é um pecado. O milho foi inventado pela humanidade.” Pelo contrário, acrescenta José Feijó, os OGM podem ser um aliado do ambiente. “Fazem poupar milhões de toneladas em pesticidas.”

Só o tempo dirá se a maçã Arctic Golden conseguirá vingar onde o tomate sucumbiu. Para já, o presidente da empresa canadiana que criou a maçã, contactado pela VISÃO, assegura que a reação dos consumidores tem sido “muito positiva”. “Além de a maioria preferir as nossas fatias de maçã a outras marcas, 95% dos que provaram as nossas Arctic Golden ficaram satisfeitos ou muito satisfeitos, e 92% disseram que as comprariam, se as encontrassem nas lojas”, atesta Neal Carter.

O alegado sucesso nos EUA é suficiente, diz o presidente da Okanagan Specialty Fruits, para estar já a preparar a expansão para o Canadá, e daí para outros países. Mas a Europa, onde a resistência aos OGM é muito maior do que do outro lado do Atlântico, continua fora do horizonte. “Não temos planos para pedir a aprovação da maçã em países europeus, embora seja uma possibilidade para o futuro.”

Até lá, podemos sempre usar um velho truque para evitar que a maçã escureça depois de cortada: umas gotas de limão. Não é alta tecnologia, mas também resulta.

Fonte: Visão

  • Last modified on Tuesday, 20 February 2018 10:39